quarta-feira, 26 de novembro de 2025

Arrábida “serra-mãe” há 80 anos (1)

 


Em 11 de Dezembro de 1945, uma terça-feira, Sebastião da Gama (1924-1952) escrevia uma carta para a namorada, Joana Luísa (1923-2014), comunicando-lhe a saída do seu primeiro livro, notícia não desprovida de entusiasmo: “Hoje devem dar-me a gravura e amanhã começam a fazer a capa. Só sexta ou sábado teremos o nosso livro. Meu Amor!...” Feitas as contas, o livro estaria pronto a 14 ou a 15 desse mês, ali bem próximo do Natal. Não sabemos exactamente se o livro ficou pronto num desses dois dias; mas, numa carta de 18 de Março de 1946, Sebastião da Gama lembrava à namorada: “Faz hoje três meses que a Serra-Mãe saiu a lume. Estou a lembrar-me da minha comoção quando eram já onze horas da noite, e a vi na montra da Portugália, 18 de Dezembro — havemos (sim, Amor?) de ensinar esta data aos nossos filhos.”

Desde essa data, o livro Serra-Mãe tem feito um percurso em louvor da Arrábida e o seu título tem servido outras artes — a Serra, pela força transmitida pela paisagem, é constantemente motivo artístico, na fotografia, na pintura (no início da década de 1940, Hélène Beauvoir registou o Portinho na tela, imagem muito divulgada nas publicações de carácter turístico da época; hoje, pintores como Rogério Chora ou Nuno David, entre outros, cultivam a Serra como tema), na música (lembremos a composição Caminhos da Arrábida, de Rui Serodio, de 2001, ou a de Agostinho Caineta, que tomou o epíteto de Sebastião da Gama para título de uma composição que a Banda Filarmónica Perpétua Azeitonense gravou em 2000) ou na escrita (são inúmeros os poetas que têm dedicado as suas métricas à Arrábida, como ainda recentemente aconteceu com Alexandrina Pereira, ao publicar o seu Arrábida - Entre a Cor e o Verso). Mas a designação “Serra-Mãe” foi ainda mais longe e emprestou o seu nome a uma marca de vinho (produzido na SIVIPA) ou, mais recentemente, à Unidade de Saúde Familiar azeitonense (USF Serra-Mãe).

A fortuna identitária desta designação metafórica e afectiva que Sebastião da Gama atribuiu à Arrábida levou mesmo a que o título da obra fosse considerado na toponímia (facto não muito vulgar, apesar de, em Portugal, serem conhecidos os casos de Os Lusíadas, em várias ruas de diversas localidades, e de Amor de Perdição, um largo no Porto), uma iniciativa apresentada por António Cunha Bento à Associação Cultural Sebastião da Gama e à Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão no início de 2016, dois meses depois aprovada pela Câmara Municipal de Setúbal (23 de Março), com descerramento de placa de identificação toponímica em 30 de Abril seguinte, assim se assinalando, na altura, os 70 anos sobre a publicação desta obra (sublinhando-se na placa tratar-se da “1.ª obra de Sebastião da Gama, 1945”). A designação “Rua Serra-Mãe” só podia ter aplicação num espaço que tivesse ligação com a Arrábida e com o poeta azeitonense, dando nome à rua por onde se acede ao Portinho da Arrábida, a partir da Estrada Nacional 379-1.

A construção da obra Serra-Mãe demorou quase tanto tempo quanto a vida do seu autor. Com efeito, a Arrábida desde cedo impressionou o jovem Sebastião da Gama — lembrava sua mãe, Ana Cardoso, que, ainda em criança, ele terá acompanhado alguém num passeio na Serra e, ao chegar, disse-lhe que fizera uma quadra: “Fui passear / à serra da Arrábia / e encontrei / uma mulher grávia.” Coincidência ou não, certo é que a ideia da serra e da maternidade se conjugariam uns anos depois para dar título a um poema e ao primeiro livro, como é certo que a Arrábida desde cedo pontuou nos versos de Sebastião da Gama — o mais antigo poema em que a menciona data de Julho de 1939 e, sob o título “Conselho”, recomenda ao irmão que fuja com a amada “p’ra serra Arrábida chamada / cuj’ alecrim belo perfume emana”... Ainda do mesmo ano, de Dezembro, é o mais antigo poema em que a serra surge como motivo — intitulado “Arrábida” (o nome da serra aparece apenas no título), a primeira estrofe diz-nos que “Portugal (...) / num local / ‘scondidinho / um canteir’ abençoado / tem, que pasma toda a gente”; na seguinte, há uma descrição da paisagem, como “linda serra, / a seus pés / estende-se o mar muito calmo / verde, azul e prateado”; a última faz a apologia da beleza da paisagem, recorrendo à contemplação e à comparação favorável à Arrábida, ao dizer que “tod’ a vista / que encerra / encanta muit’ e deslumbra; / do panorama a beleza, / que é mista / - mar e serra - / deixa Sintra na penumbra.”

*João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1652, 2025-11-26, pg. 10.


quinta-feira, 20 de novembro de 2025

Sabores e histórias de Sesimbra

 


A identidade local ou regional também é feita do que se cozinha e se come — se dúvidas houvesse, bastaria lembrar a quantidade de receitas (de carne, de peixe ou de doçaria) que, no nome, trazem associado o nome da localidade onde foram criadas (mesmo que recorrendo ao trivial “à moda de”), busca ainda mais interessante se folhearmos o Cancioneiro Popular Português, recolhido por José Leite de Vasconcelos (1858-1941), só publicado entre 1975 e 1983, e lermos a quantidade de versos dedicados às comidas locais, por onde passam os ingredientes (ervas, legumes), os animais (terrestres, aquáticos ou voadores), o pão (e os cereais), as frutas ou as bebidas (alcoólicas e não alcoólicas) característicos de muitas localidades do país, uma recolha que vive da literatura oral e constitui um extraordinário retrato etnográfico.

A gastronomia sesimbrense ganhou um registo interessante de histórias e de receitas ao ser publicado o livro A que sabe Sesimbra - Quando os sabores diferenciam um território (Junta de Freguesia do Castelo, 2025), obra resultante da pesquisa e coordenação de Maria Manuel Gomes, que, em texto introdutório, refere: “Ao longo deste livro, convidamos os leitores a descobrirem os sabores que definiram a identidade de Sesimbra, a conhecer os produtos típicos da região, como o peixe fresco, o pão, os queijos, a doçaria, e a saborear as tradições que perduram, resistindo ao passar dos anos.” O desafio posto aos leitores sentiram-no também muitos naturais das freguesias do Castelo e de Santiago, que, como é dito em nota final, “em conversas de café, entrevistas demoradas, através das redes sociais ou até em simples contactos telefónicos, (...) abriram as portas das suas memórias”, partilhando “os segredos culinários de família, aqueles que passam de geração em geração e que dão verdadeira alma a cada prato.” 

São quinze os capítulos que organizam esta colectânea de sabores, sempre apelando para a reunião dos convivas através da expressão “à mesa”, ordenados de acordo com o momento das refeições diárias (pequeno almoço, lanche), com os ingredientes predominantes (ovos, sopas e legumes, peixe, marisco, carne, caça), com o calendário festivo (santos populares, festas religiosas), com produtos regionais (doçaria, fruta, mel, vinho) ou com situações específicas (doença), apresentando um conjunto próximo da centena e meia de receitas.

Associada às várias receitas, aparece, frequentemente, uma rápida alusão à preservação do património local, como acontece ao mencionar as papas de abóbora (“são hoje memória viva de uma gastronomia popular, marcada por ingredientes locais, sazonalidade, e uma forte ligação à terra”, representando “um património imaterial que merece ser valorizado, não apenas no seu valor nutritivo, mas também pelo testemunho que dão de um modo de vida simples, resiliente e profundamente enraizado na cultura rural portuguesa”), assim como se reaviva a memória de passados recentes, como no exemplo da batata frita do Zé Tucha (“era junto às rampas de acesso à praia ou à saída do autocarro que levava os jovens para o antigo Colégio Costa Marques que o encontrávamos a vendê-las, sendo quase impossível resistir ao cheiro que se espalhava no ar”), ou se insiste nas marcas identitárias que construíram o quotidiano, servindo de exemplo o que é dito sobre os rabos de sardinha cozidos em água e sal (“um alimento com história, feito da relação íntima entre o mar, o trabalho e a mesa”) e também sobre a farinha torrada sesimbrense (“alimento energético levado pelos pescadores para o mar ou pelos trabalhadores para o campo, servindo como reforço alimentar nos longos dias de faina”).

Por esta recolha passam também apontamentos curiosos, construtores da identidade, como: o episódio da encomenda de 660 empadas de piscos (que exigiam 2304 pássaros) pelo Marquês de Tancos em 1770 ao sesimbrense  Fonseca Pacheco; a utilização do cozido à portuguesa para a celebração de determinados momentos, como na Festa das Chagas; a crença na utilidade da mioleira de borrego com ovo (“acreditava-se que, por ser ‘comida de cérebro’, ajudava no desenvolvimento e na inteligência dos mais pequenos”); o hábito, na vila de Sesimbra, de, “ainda antes do casamento, os noivos oferecerem pratos de bolos aos vizinhos e familiares que não participariam directamente na cerimónia”; ou a prática do leilão das fogaças, em Alfarim, no dia de Natal, após a missa, cujo “valor angariado com a venda revertia para as festas locais e para obras de beneficência da Capela” local. A memória dos sabores encontra também, por vezes, um momento de sensibilidade poética, como quando se referem os malacuecos, mistura de açúcar e de muitas cores que alimentavam a delícia das crianças — “estes matacões coloridos não eram apenas guloseimas: eram pequenas alegrias de bolso, símbolos de infância e de um tempo em que um simples caramelo podia encher o dia de doçura e fantasia”...

Para que o leitor não se sinta excluído, além de ter a possibilidade de experimentar as sugestões, no final, há ainda uma dúzia de páginas em branco com o sugestivo título “Lembra-se de mais alguma receita?”, convite para que cada um entre no livro e o complete à sua maneira, listando ingredientes e prescrevendo a confecção ou lembrando histórias associadas à alimentação...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1647, 2025-11-19, pg. 9.


quarta-feira, 12 de novembro de 2025

O diário do exilado Manuel Vinhas

 


Entre 10 de Dezembro de 1974 e 31 de Dezembro do ano seguinte, Manuel Vinhas (1920-1977) escreveu um diário, publicado em 1976 sob o título Profissão Exilado, com prefácio de Agostinho da Silva (de quem foi amigo) e testemunho de Luiz Pacheco (de quem foi protector).

Manuel Vinhas, empresário, teve, no final de Setembro de 1974, de fugir, depois de ter sido alertado sobre eventual prisão, motivada por alegado envolvimento nos acontecimentos políticos ocorridos dias antes. Em Madrid, em 10 de Dezembro (o primeiro registo), recorda o testemunho que lhe chegou sobre o momento em que as milícias o procuraram “de metralhadoras em punho, obrigando os meus filhos a saírem da cama de madrugada, interrogando-os com ameaças, despejando garrafas de vinho, roubando as espingardas de caça. Como não me encontraram, repetiram a ‘visita’ na noite seguinte; beberam mais vinho — o que tomei como homenagem ao meu critério selectivo — e roubaram um automóvel”. Razões para esta invasão? “Disseram-me depois que a razão de me quererem prender era a de estar incluído na lista de reféns do partido comunista, e a ‘honrosa’ escolha baseava-se em desfrutar de certa popularidade entre os que para mim trabalhavam, e ser, assim, um empecilho para manobras que se preparavam.”

É em nota prévia que o autor justifica o seu livro: “A razão principal deste livro é mostrar a vida de um homem na diversidade do quotidiano.”, observação que vai ao encontro de Agostinho da Silva, que assim conclui o seu prefácio: “quaisquer que tenham sido as dificuldades que a aventura trouxe a Manuel Vinhas, estou contente com ela: os negócios o afastavam de si próprio (...); faltava-lhe cumprir o dever primordial de nós todos: sermos o que somos.”

Com efeito, Manuel Vinhas vai dando nota dessa ‘descoberta’, que assume, como quando escreve que “nestas páginas trato de coisas da minha vida, e assim também de pessoas com quem tenho convivido” (11 de Junho) ou ao relembrar que “tomei o compromisso de me mostrar nestas páginas como sou; não para que me sejam reconhecidas qualidades, mas para evidenciar características” (5 de Agosto), acompanhando o leitor o itinerário do autor por Espanha, França e Brasil (onde já se encontra em Janeiro), primeiro no Rio de Janeiro e, depois, na Baía (Salvador e Itapoã), havendo ainda três deslocações à Europa (em Abril, Junho e Outubro).

A variedade das observações é intensa: o sentido da ligação ao mundo da arte (Vieira da Silva e Arpad, Manuel Cargaleiro, Millor Fernandes, Carybé, Júlio Pomar, entre outros), mas também da política (António de Spínola, Adriano Moreira, Américo Tomás, Marcelo Caetano, por exemplo), partilhando conversas e contactos; a preocupação com a família (em que ganha peso a distância geográfica, doendo-lhe a impossibilidade de ter estado no casamento do filho, mas também o caminho feito no sentido de a reunir, como vai acontecendo gradualmente); o rumo que a política levava em Portugal e em Angola (cuja independência defendeu desde cedo), ainda que percepcionado pelos relatos que lhe faziam chegar (vai vendo que a espera é demasiado longa e o ideal se vai perdendo — é em tom irónico e decepcionante que termina o seu diário, em 31 de Dezembro: “Estou cada dia mais atento ao balançar dos coqueiros e menos interessado na multiplicação das chaminés fabris. Obrigado, revolução. Revolução em que pus a maior esperança e me trouxe as maiores desilusões.”); as dificuldades em que viviam muitos portugueses em fuga (“Todos os dias, mas todos os dias, pessoalmente, pelo correio ou pelo telefone, contacto portugueses que partiram ou vão partir de Portugal, de Angola, de Moçambique. Uns animados, com ocupação garantida ou pecúlio transferido, outros desesperados, sem amanhã assegurado e sem terem podido salvar nada do que tinham juntado com muito trabalho e esforço.”); algumas notas curiosas, como a da razão que levou à não-permissão da marca “Coca-Cola” em Portugal, decidida pelos governantes (Salazar “não queria ceder na sua obstinada recusa dentro da natural antipatia que tinha por ‘americanices’, mas necessitava de encontrar uma boa desculpa”, construída por Jorge Jardim — “partindo de que a palavra ‘Coca’ é diminutivo que em português é sinónimo de cocaína, (...) concluía pela ilegalidade da produção em Portugal, pois, ou continha cocaína, o que não era permitido pela Lei, ou não continha e induzia o público em erro, o que a lei também não poderia autorizar.”); ou as considerações sobre a gastronomia, as festas, as caçadas, o convívio, a arte.

Os momentos de poesia povoam também este diário, como se evidencia na declaração amorosa que faz à mulher, Concha, em 8 de Dezembro (“Gostam os meus olhos das rugas do teu rosto, cicatrizes de uma vida comum”), ou no encanto decorrente de um instante, como quando vê o passar de uma gaivota (“Voa a gaivota branca, o seu destino é voar. No ar desenha arabescos que fazem sombras no mar”, 23 de Abril).

Com razão, Luiz Pacheco, crítico insuspeito, considerou que, nesta obra, não dever ser esquecido “o desfasamento temporal a que estão sujeitos os exilados”, o que condiciona a análise dos acontecimentos, ao mesmo tempo que a viu como conjunto de “páginas soberbas, pequenas aguarelas ricas de colorido e sentido de observação, (...) um livro cheio de movimento e comovente de vida.”

João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1642, 2025-11-12, pg. 10.


sábado, 8 de novembro de 2025

Quando os alunos escrevem sobre Camilo - “CREscendo”



Camilo Castelo Branco (1825-1890) nem sempre tem sido bem tratado nos programas de estudo do ensino secundário — por vezes omitido, outras vezes enormemente fragmentado, aparecendo mais como um autor de segundo plano, que até pode ser apenas possibilidade. O facto de estar a passar o segundo centenário sobre o seu nascimento tem sido um bom pretexto para uma quase “redescoberta” deste autor.

CREscendo é o título de um jornal digital (que há dias foi vencedor do Concurso Nacional de Jornais Escolares, promovido pelo Público), publicado pela Escola Secundária de Sampaio (Sesimbra), coordenado por Catarina Labisa, professora. Com três números editados no ano lectivo passado, o segundo, saído em Abril, dedicou meia centena de páginas (metade da edição) ao génio e obra camilianos, em trabalhos elaborados por alunos do 11.º ano, decisão assim justificada no editorial: “É tempo de comemorar o escritor mais prolífico da literatura portuguesa, alguém que escreveu como quem come, ou mesmo quando não comia, como quem respira. (...) Camilo Castelo Branco (...) viveu muito e em circunstâncias tantas vezes apertadas, acossadas, dramáticas, e essa vivência torrencial foi transposta para páginas que podem hoje parecer algo pueris, ao bom tom romântico, mas que nunca prescindem do humor, pois, como dizia o autor, só se consegue uma boa página de tragédia depois de destilar tudo o que existe de comédia na vida.”

Nove obras camilianas são abordadas (Amor de PerdiçãoOnde está a Felicidade?Doze Casamentos FelizesMemórias do CárcereNoites de LamegoO EsqueletoO Retrato de RicardinaA Mulher Fatal e Novelas do Minho) por dezassete alunos e por dois professores, em leituras muito abertas, dando azo a que os trabalhos dos estudantes, além de apresentarem um resumo das narrativas, sejam enriquecidos pelo recurso à citação da obra em apreço e pela opinião crítica de leitor, maioritariamente virada para a possível “actualidade” que essa obra possa ter ou para a importância que ela alcançou no trajecto camiliano, não esquecendo também as “releituras” que algumas delas tiveram, fosse noutros autores (como Agustina Bessa-Luís ou Aquilino Ribeiro) ou noutras artes (como no cinema).

Muito interessante é o texto de abertura, assinado pela professora responsável e por Maria Carolina Livramento (aluna), que, traçando um percurso biográfico de Camilo, o fazem assentar sobre marcas autobiográficas que perpassam na obra (em No Bom Jesus do MonteAmor de Salvação ou Duas Horas de Leitura, por exemplo), dando destaque à forte possibilidade que associa Camilo à história local de Sesimbra — o facto de sua mãe, Jacinta Rosa, ser originária de família de pescadores sesimbrense, ligação defendida desde 1944 a partir das páginas do jornal O Sesimbrense, recurso bem presente neste ensaio (a relação amorosa dos pais de Camilo, iniciada em Sesimbra, já passou para a ficção, como aconteceu no romance Senhora Menina, de Augusto da Costa, publicado em 1952). Curiosa também é a abordagem feita a Amor de Perdição por Maria Ramos e por Nídia Carvalho, inserindo esta obra na tradição do amor impossível, aproximando o destino dos amantes ao Romeu e Julieta shakespeariano, ambos momentos de um trajecto que poderia recuar até Tristão e Isolda e que se tem prolongado no tempo...

Ao longo dos vários textos, os alunos-autores vão dando nota de aprendizagens para a vida, como acontece, por exemplo: com Leonor Severo, quando, depois de ler Onde está a Felicidade?, nos diz que Camilo “mostra que a felicidade talvez nunca seja perfeita, mas pode estar mais perto do que imaginamos, se estivermos dispostos a reconhecê-la”; com João Silva, que, a propósito de Doze Casamentos Felizes, considera que se idealizam “às vezes as relações conjugais, mas as tensões entre as pessoas, as convenções que as condicionam e a hipocrisia social podem destruir muito do que o ideal construiu”; ou com Mariana Santos, sobre o conto “Maria Moisés”, quando refere a sua importância “por nos conseguir tocar tão profundamente que nos faz questionar os valores que eram aceites naquela época, alguns dos quais ainda ressoam nos dias de hoje, como a desigualdade de género, os tabus relativos à sexualidade e o peso diferenciado que é dado ao homem e à mulher no que toca à liberdade sexual”.

O estilo camiliano não escapa às observações, como mencionam, por exemplo, Leonor Sotero e Marta Garcia ao referir as histórias de Noites de Lamego (“todas com um sabor de realidade e fantasia, de romance e de crítica, boas para ler ao serão e deixar-se prender pela extraordinária arte de Camilo para nos levar a conhecer personagens originais e enredos intrincados que ele fundou na sua observação, na sua experiência e na sua imaginação”) ou Matilde Pinheiro, ao classificar “A Morgada de Romariz” (“uma obra muito feliz, que tem um bocadinho de tudo o que faz uma boa narrativa: personagens peculiares, sentimentos muito humanos, problemas familiares, crítica social e comédia quanto baste para aliviar a seriedade de algumas cenas mais cortantes”).

As apreciações que alimentam esta edição de CREscendo constituem outras tantas motivações para o convívio com Camilo, afinal uma maneira de formular um convite para esse gesto de o lermos... e é muito bom que esse convite venha da parte da juventude!

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1637, 2025-11-05, pg. 10.


quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Cristão, pescador, sacristão e contínuo

 


“Muito obrigado, meu Jesus, por me teres criado, por me teres feito cristão, pescador, sacristão e contínuo.” Assim se inicia uma oração composta por João Maria Afonso Lopes (1914-1999), popularmente conhecido como “João Sacristão”, setubalense cujo nome consta na toponímia, texto que visou formular um “agradecimento ao Pai do Céu” por tudo aquilo que a vida lhe proporcionou e pelo que conseguiu fazer.

Este testemunho consta no livro João Sacristão - O Apóstolo das Pequenas Urgências (Paulinas Editora, 2025), de Conceição Lopes (n. 1950), filha do biografado, que justifica o epíteto com uma definição sentida do que foi o trajecto de seu pai: “A tua vida foi Missa em andamento — feita de gestos simples e profundos, como oferendas silenciosas: tempo partilhado, escuta atenta, justiça cultivada, perdão sem medida, cuidado constante e santa indignação diante da dor dos mais frágeis.”

Ao longo desta obra, o leitor está perante um misto de biografia (na medida em que se narra a vida de uma pessoa, percurso apoiado por meia centena de fotografias) e de livro de memórias (porque está presente a relação familiar entre o biografado e a autora, que recorre amiúde às suas lembranças), havendo ainda espaço para ser um escrito de louvor e de reconhecimento da estrutura familiar e da escola de valores construídas por João Lopes e por sua mulher, Tereza Oliveira (1913-1986), vinda da Murtosa.

Apesar de o título nos remeter para a possibilidade de um retrato sobre João Lopes, a verdade é que a história rapidamente é também dominada pela figura de Tereza Oliveira, assistindo o leitor mais à história da vida de um casal que se deixa envolver por uma partilha apoiada na construção da família e na assistência aos outros. De resto, a autora logo anuncia esta história a dois no texto prefacial: “A ti, leitor, desejo que estas páginas te acolham como quem entra numa casa aberta — e que, ao encontrares o Ti João Sacristão, meu pai, sintas a força da sua fé em acção, a sabedoria e coragem de Tereza, e a alegria de ambos em tornar o mundo mais justo, mais terno, mais fraterno.”

O programa de vida de João Lopes parece ter sido anunciado no nome da bateira em que, desde os sete anos, acompanhou o pai nas lides da pesca — “Vamos com Deus”, assim se chamava a embarcação, resumia a confiança na protecção perante as adversidades e apontava um caminho alicerçado na fé, algo que a criança podia associar às histórias que o pai lhe contava, vindas dos escritos bíblicos.

Depois, foi a construção do caminho: pescador com cédula aos 14 anos (1928), sacristão na igreja de S. Sebastião no mesmo ano em que Tereza começou a trabalhar como conserveira (1937), casamento (1940), nascimento dos filhos (1942-1952), participação na Juventude Marítima Católica, envolvimento em iniciativas diversas ligadas à vida religiosa da comunidade (construção das capelas de Nossa Senhora de Fátima, no Faralhão, e de S. José Operário, no Bairro Afonso Costa; edificação do nicho da Senhora do Cais; criação da Conferência Vicentina Juvenil de S. Sebastião; catequista; contributo para a retoma da celebração da Festa de Nossa Senhora do Rosário, em Tróia), contínuo dos Serviços Municipalizados de Setúbal, entre muitas outras iniciativas em que esteve envolvido.

Nesse caminho, a sensibilidade de João Lopes levou-o a ser inovador na forma de viver a fé, como aconteceu em 1957, quando, na igreja de S. Sebastião, na Missa de Aleluia, incentivou o “quadro vivo” alusivo à Ressurreição, uma “cena de cortar a respiração”, em que participaram crianças e jovens, num trabalho de criatividade e de missão. Igual sensibilidade caracterizou o seu percurso de dádiva e de vivência da fé, manifestando-se como “presença constante junto dos últimos dos últimos: os pobres, os velhos esquecidos, as crianças sem abraço, os doentes sem visita, os excluídos da alegria e os presos na solidão do mundo e da alma”.

O olhar da autora de João Sacristão - O Apóstolo das Pequenas Urgências não se desprende nunca do olhar de filha do biografado, numa escrita em que perpassa com frequência um sentir poético, assim como a intenção de testemunhar em resposta a um desafio que o pai lhe deixou: “Querida filha Maria da Conceição, escreve o que for importante... para que um dia saibam que a minha vida só tem sentido em Deus.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1627, 2025-10-22, pg. 10.


quarta-feira, 15 de outubro de 2025

Um silêncio que fala

 



O título aproxima-se do poético — O tanto que grita este silêncio. O subtítulo tira as dúvidas e diz ao que vem o livro — “Porque se abstêm os portugueses?” (Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2025). Em nota de apresentação, o livro de Nelson Nunes (n. 1986) surge como “retrato” que visa “suprir uma lacuna no debate na esfera pública, dando voz aos reais protagonistas do abstencionismo em Portugal”, sob duas epígrafes: uma, de Jefferson, segundo o qual “não temos um governo pela maioria, temos um governo pela maioria que participa”; outra, de Céline, mais próxima do argumento de muitos abstencionistas — “Nunca votei em toda a minha vida. Sempre soube que os idiotas estão em maioria e sairão vencedores.”

O livro, integrado na colecção “Retratos da Fundação”, segue a estrutura habitual dos títulos que se albergam nesta série: normalmente de carácter jornalístico, respeitando os princípios de uma mais ou menos extensa reportagem, em que há espaço para muitas vozes (abstencionistas, analistas e estudiosos), explorando as respostas que possam levar ao  “como” e ao “porquê” dos acontecimentos, e para reflexões pessoais do autor — aliás, a narrativa inicia-se com uma experiência vivida pelo autor, quando aluno do ensino secundário, numa aula de Introdução ao Direito, em que celebrou o seu compromisso: “Nunca hei de falhar uma eleição, porque a vida dá muitas voltas.”

Desde o início, o olhar sobre a abstenção recusa estigmatizar aqueles que têm optado por essa via: “Tenho uma outra proposta: ver os abstencionistas como adultos que tomam decisões em consciência. Que decidem activamente não votar. Com as suas razões.” Este propósito encaminha para algumas hipóteses, que o autor não omite: por um lado, “a política não está a comunicar de forma eficaz para chegar a todos, ou para satisfazer todos”; por outro, “os abstencionistas estão só à espera de ser ouvidos”, porque terão coisas a dizer.

Um dos entrevistados, no Porto, justifica a sua descrença nos políticos: “falta de compromisso político com o nosso país”, com “os próprios valores e ideias centrais da democracia viciados e facilmente corrompidos”. Idêntico sentimento perpassa por uma cidadã de Barcelos, octogenária, que deixou de votar, abstenção provocada por “uma zanga com os políticos, que, um atrás do outro, lhe vão faltando nas necessidades e lhe acertam em cheio no bolso e no bem-estar”. A falta de informação sobre os programas eleitorais e a indecisão quanto a opções foi a razão invocada por outra entrevistada da zona de Coimbra, influenciada pela ausência de estímulo para interesse por esta área quando era mais nova, mas a tentar pôr-se mais a par do que vai acontecendo. Não é por falta de informação que um emigrante na Irlanda não participa nos actos eleitorais — militante partidário na juventude, certo é que, “em dezoito anos de idade eleitoral, nunca votou”, muito influenciado pelo “temor de votar de forma pouco informada”. Também não falta informação a uma entrevistada que circula entre Braga e Porto, mas que optou pelo abstencionismo a partir do momento em que, nas eleições de 2015, se sentiu desrespeitada como eleitora por causa do “estratagema imprevisto” que aliou três partidos não vencedores de eleições para formarem governo. Mais radical parece ser a moradora em Odivelas, que, entre o votar em branco e o abster-se, larga a provocação: “Quase tenho vontade que haja um motim, uma revolta, em que todas as pessoas digam que não vão votar”, pois “não há nenhum partido em Portugal que nos dê segurança”. A navegar contra esta corrente, está o entrevistado de Rio de Mouro que deixou o abstencionismo para passar a ser participante no acto eleitoral, depois de um encontro com o amor e com a reflexão... que o fizeram considerar ser “perigoso deixar que uma pessoa qualquer governe os nossos destinos” e que, nas eleições, não se trata “de mim, trata-se de agirmos em conjunto”.

A decisão de votar pode estar relacionada com a proximidade de cada um com os partidos, com “a percepção de que o estilo de vida está em jogo”,... mas torna-se importante a convicção de Nelson Nunes — “os abstencionistas com quem tenho conversado revelam-se interessados por política, ainda que não se identifiquem com qualquer programa partidário”. Seja a dificuldade em ir votar, seja o desinteresse, seja o cansaço eleitoral ou qualquer outro condicionalismo que justifique a abstenção, a verdade é que contrariar esta prática exige esforço e descoberta de soluções — “simplificar o modo como se fala de política”, reorganizar os círculos eleitorais, aproximar os políticos relativamente às comunidades e trabalhar em prol das mesmas (sem que isso se verifique apenas em acto de campanha), agilizar os mecanismos que gerem confiança nas instituições e nos políticos e incutir responsabilidade aos cidadãos pela via da participação podem ser formas para tentar esbater a elevada abstenção. “O que falta é pôr os abstencionistas na comunicação social: libertá-los de um certo sentimento de vergonha, ouvi-los e perceber que caminho construtivo se pode desenvolver a partir daí” — tal é o esforço necessário e este livro de Nelson Nunes constitui um simpático contributo para essa reflexão, por certo indispensável.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1622, 2025-10-15, pg. 10.


quinta-feira, 9 de outubro de 2025

Ouvintes e falantes que somos...



Andamos em tempo de discursos promissores do paraíso na terra (sem que se diga como) e repletos de observações sobre os outros (que são os potenciais adversários), replicados e anotados em não menor estilo de campanha por quem se diz ser comentador... Vem à memória, para contrariar, um poema que corria nos manuais escolares da escola primária, “Vozes dos Animais”, jogo com os verbos que designam as vozes de quase quarenta animais e conclui com o humano: “A fala foi dada ao homem, / Rei dos outros animais. / Nos versos lidos acima, / Se encontram, em pobre rima, / As vozes dos principais.” O autor não se tinha em grande conta como poeta, mas o texto vingou e permaneceu e, em 1883, Antero de Quental, na sua recolha Tesouro Poético da Infância, incluía este poema de Pedro Dinis (1839-1896), nome de quem pouco se sabe. Camilo Castelo Branco também o antologiara no seu Cancioneiro Alegre (1879), escolhendo um outro texto, mas mencionando ser “Vozes dos Animais” o seu mais conhecido poema, um conjunto “de quadrinhas recitadas pelos nossos pequenos” onde “destila dos seios o leite da instrução primária em apojadura copiosa”.

Ao destacar o homem por ser a criatura que fala, Pedro Dinis intuía que tal superioridade advinha do acto de pensar e do saber, fases primeiras para que a fala seja consistente, fundamentada. Apesar de se saber isso, a verdade é que o esquecimento nos atraiçoa muitas vezes. Assim, na lembrança sobre a oportunidade da fala, recorra-se a Julian Barnes, que nos transmite, quase proverbialmente, o que deveria ser levado como máxima de vida: “Sobre aquilo de que não sabemos falar devemos guardar silêncio.” (in O Sentido do Fim, 2011) Contudo, atrever a incluir este princípio na argumentação é difícil... pois a qualidade da argumentação na discussão e partilha de opiniões nem sempre é preocupação e os hábitos legitimam o falar “porque sim”, confundindo as noções de direito adquirido, liberdade de expressão e ignorância.

Uma outra farpa no discurso é a das condicionantes com que o querem formatar, mais com o objectivo de destruir ideias ou quem as profere. Na narrativa Desisto (2006), Philippe Claudel chamou a atenção para isso, ao dizer: “Hoje em dia, toda a gente evita chamar as coisas pelos nomes: um cego é um invisual, um animador de televisão um artista, os mortos em breve serão não-vivos.” Esta observação ganha acuidade hoje, tempo em que os cuidados em torno dos substantivos (prefiro esta designação àquela que a gramática instituiu, designando-os como “nome”) e dos adjectivos utilizados condicionam a expressão e facilmente servem para fazer desmoronar uma ideia ou para se ser acusado de coisas que nem tinham passado pela cabeça do falante.

Com mais ou menos habilidade, quem fala facilmente pode chegar à falácia (um raciocínio incoerente e não fundamentado, aparentemente verdadeiro) e o objectivo do discurso como forma de aproximação entre humanos facilmente se esvai, com proveito apenas para uma das partes. Deve-se a Eurípedes, na peça teatral As Bacantes, uma análise como esta: “Quando falta o bom senso ao homem audaz e simultaneamente poderoso e hábil na palavra, ele torna-se um cidadão perigoso.” Eurípedes, vivendo no século V antes de Cristo, sabia o que pode um discurso hábil fazer, mesmo que assente sobre erros ou mentiras, sobretudo se não houver o discernimento necessário à análise e reflexão sobre o mundo. O papel do ouvinte, muitas vezes passivo ou na pele do adepto fervoroso, presta-se à situação, sobretudo se se valorizar o espectáculo ou o sentir grupal (venha ele por razões sociais, profissionais, políticas, desportivas ou outras). A verdade é que a responsabilidade do ouvinte é grande, mas, muitas vezes, anulada, como se infere do que escreveu Italo Calvino, em As Cidades Invisíveis (1972): “Eu falo falo, mas quem me ouve só fixa as palavras que deseja. (…) Quem comanda o conto não é a voz: é o ouvido.” Será pouco, convenhamos, para aquilo que deve ser um ouvinte...

Foi Ruben A. (falecido há meio século), com a sua causticidade e análise provocatória, que, no segundo volume do relato autobiográfico O Mundo à Minha Procura (1966), gravou este pensamento: “Sempre notei que na vida portuguesa não há qualquer relação entre os discursos que se proferem, parangonas que os jornais estampam, e a vida real do País. (...). Em discursos devemos ser o primeiro país do mundo, não só pela quantidade, mas pela diversidade de estilos e de assuntos que cada ser genial abarca diante de um público numeroso e atentamente interessado.”

Um olhar assim condicionado sobre a vida leva a que se siga o que Oscar Wilde desmascarou: “Aquilo de que se não fala nunca aconteceu. É apenas a expressão que dá realidade às coisas.” (in O Retrato de Dorian Gray, 1891) O problema parece residir, então, na selecção dos (prováveis) acontecimentos. E, consequência disso, com frequência, a discussão da actualidade passa pela discussão do que foi dito e como foi dito e não pelo tema do que foi feito ou do que falta ou do que deveria ser feito. E, já agora, do “como” deveria ser feito, uma tónica em que o discurso político é sempre hábil na arte da fuga e na arte (pouco) argumentativa...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1617, 2025-10-08, pg. 2.

     

sexta-feira, 3 de outubro de 2025

Catarina Pires e a descoberta da Filosofia

 


“A elaboração do presente trabalho teve como objectivo vincar alguns dos conceitos fundamentais dos principais filósofos abordados e analisados no decurso deste ano, os quais me permitiram ter uma visão mais ampla do conhecimento e da natureza dos valores humanos.” É assim que abre o texto introdutório à obra agora publicada, Glossário de Filosofia (Setúbal, Centro de Estudos Bocageanos), da autoria de Catarina Pires, jovem que concluiu o 10.º ano na Escola Secundária D. João II, em Setúbal, livro que reproduz um trabalho feito no âmbito da disciplina de Filosofia.

O leitor é então levado para os “conceitos fundamentais”, uma espécie de reunião das chaves-mestras do pensamento, obedecendo, como o título deixa antever, a um inventário de ideias ou de nomes, seguindo a ordem alfabética, um ensaio de organização de descobertas e de aprendizagens havidas.

São cerca de 170 as definições apresentadas, a que se soma uma trintena de entradas elementares sobre outros tantos pensadores com indicação do seu período de vida e dos principais títulos que nos legaram, tudo organizado em onze capítulos, divisão que resulta das próprias áreas estudadas na disciplina de Filosofia — “Concepção filosófica geral”, “Ética e Moralidade”, “Filosofia Clássica e grandes nomes da Filosofia”, “Lógica e Raciocínio”, a Filosofia como suporte de diversas áreas (arte, ciência, linguagem, mente e moral, política e social, religião) e ainda “Outros conceitos filosóficos”.

Este glossário é uma tentativa de inventário do que foram o estudo e a pesquisa de um ano, não surgindo como uma caixa fechada, mas como um espaço que pode alimentar pontos de partida. Útil, porque organiza e mapeia os conhecimentos; desafiante, porque não fecha certezas e convida ao pensamento e à procura de sentidos.

Compreendidas alfabeticamente entre “acção contrária ao dever” e “véu da ignorância” (ainda que pertencendo estes conceitos a capítulos diferentes), as definições oscilam entre aspectos mais abstractos e outros mais próximos; no entanto, sempre oportunos e com a necessidade de serem olhados para justificar a vida e as suas atitudes, sobretudo num tempo (como o de hoje) em que parece ganharem terreno o desrespeito pelo outro, o discurso falacioso, a colisão com a liberdade, a aceitação da intolerância ou o desprezo pela argumentação... Está o leitor perante definições que, no mínimo, remetem muito mais para a reflexão do que para as certezas, deixando-nos o dever de aprofundar e de agir em conformidade. Repare-se em alguns exemplos de definições, desafiando-se o leitor para entender a que se refere cada uma delas: “crença ou juízo subjectivo que não possui garantia de verdade objectiva”; “condição de agir conforme a própria vontade, dentro dos limites impostos pela razão e pela ética”; “capacidade de uma pessoa ou grupo social aceitar e respeitar as crenças, práticas e os comportamentos de outra pessoa ou grupo que sejam diferentes das normas ou valores do seu próprio grupo”; “raciocínio errado com aparência de verdadeiro, argumento incoerente, sem fundamento e inválido, utilizado de forma a provar eficazmente o que alega”; “liberdades fundamentais que garantem a autonomia e dignidade de cada pessoa, incluindo direitos como liberdade de pensamento, de expressão, de religião, o direito à vida e à propriedade”, cuja protecção “é essencial à construção de sociedades mais justas e democráticas”; “conjunto de todas as características e eventos-chave que compõem o essencial da existência humana, incluindo nascimento, crescimento, emoção, aspiração, conflito e mortalidade.” Percebe-se, seguindo a ordem destas definições, que se está a falar, respectivamente, de “opinião”, “liberdade”, “tolerância”, “falácia”, “direitos individuais” e “condição humana”. Este glossário, além de sistematizar alguns conhecimentos, apresenta a vantagem de nos poder levar a reflectir sobre o quotidiano, seja para alicerçarmos as opções individuais, seja para respeitar e construir a sociedade de que fazemos parte.

Ao longo do livro, há lugar para algumas referências bibliográficas, espaço em que teria sido vantajoso a Catarina Pires libertar-se um pouco da fidelização ao manual escolar adoptado, podendo ter sido objecto de pesquisa outros títulos no mesmo âmbito, pelas portas referenciais que a pluralidade de reflexões poderia suscitar. Para trabalho de final de ano lectivo numa disciplina do ensino secundário, este Glossário de Filosofia demonstra a utilidade do aprender a pensar na formação do indivíduo, o prazer de assumir o risco da exposição numa área que se está a descobrir e o altruísmo da partilha de verdades fundamentais que têm aplicação na vida.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1612, 2025-10-01, pg. 4.


quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Alexandrina Pereira e Nuno David dão voz e cor à Arrábida



O livro Arrábida - Entre a Cor e o Verso, de Alexandrina Pereira, com ilustrações de Nuno David, recentemente publicado (com trabalho gráfico de Raul Reis), surge numa aliança de palavra e imagem, ambas criadas para servir a possível descrição dos sentimentos e emoções que a Serra consegue incutir-nos. Comecemos pelos dois primeiros textos, ambos premonitórios quanto ao que vamos encontrar — o de Alexandrina Pereira, que logo confessa resultarem os seus poemas de um “profundo amor pelos cantos e recantos de um lugar mágico e sagrado”, e o de Nuno David, que, num discurso anafórico, demanda, em oito perguntas, se “haverá outra serra” tão importante como a Arrábida pela sua localização e inspiração e como espaço de poetas e de santos, concluindo, de forma absolutamente decisiva: “Haverá? Não, não há!” Com certeza, os dois autores subscreveriam os três primeiros versos do longo poema à Arrábida assinado por Alexandre Herculano, essa referência da cultura portuguesa que bem viveu esta Serra, de dia ou de noite, a partir do Calhariz que o acolheu — “Salvé, ó vale do sul, saudoso e belo! / Salvé, ó pátria da paz, deserto santo, / Onde não ruge a grande voz das turbas!”

Aos referidos textos de abertura, seguem-se 30 poemas, que são outros tantos louvores da Arrábida, ora personificada, ora indescritível, ora magnífica na sua grandiosidade, sempre sugerindo e suscitando poesia, em viagem por caminhos, íngremes umas vezes, apaziguadores noutras, ao encontro da meditação, num trajecto em busca da palavra essencial, do sentido maior, da experimentação do que será uma via da transcendência, da oração, da fé.

Saltitam os versos por atalhos onde crescem o alecrim, a alfazema, o cardo, a esteva, o folhado, a giesta, a madressilva, o medronheiro, a rosa, o rosmaninho, a salva, o trevo ou a urze. Brotam as palavras por entre o respirar do arvoredo, olhando as aves, contemplando a vastidão, ouvindo o silêncio, com um fundo musical de vento e de cor, venha ela do rio ou da Serra, numa oscilação entre o azul e o verde. O discurso do espaço arrábido constrói-se sobre uma sinfonia de vozes rumorejantes — do mar, ali aos pés; do canto das aves, em escalas diversas; do sibilar da folhagem; do esgar sugerido pelo sorriso das flores; da fragrância mesclada no ar; dos esvoaçares que surpreendem ou levam o nosso olhar; das tonalidades de verde entre o azul da água e o azul do céu; dos passos que procuram, restolhando ou enxergando os degraus que conduzem ao céu...

A Serra afigura-se como um cenário grandioso (de dia ou a horas crepusculares, à luz do sol ou em diálogo com as estrelas), onde o poeta constrói o seu altar para a celebração da poesia, um pouco na esteira dos seus muitos antecessores, com os nomes de Agostinho da Cruz e de Sebastião da Gama invocados diversas vezes, num acto de reconhecimento dos percursores que foram nesta celebração da Arrábida como templo de contemplação.

Os seis desenhos que Nuno David apresenta nesta obra abrem espaço para este hino à Arrábida, seja pelas imagens captadas dos caminhos e da amplidão da Serra, seja por aquelas que nos remetem para os recantos onde se exprimem manifestações do sagrado. As tonalidades discretas escolhidas deixam margem para a diversidade de tons que a paisagem apresenta, ao mesmo tempo que o traço adensa a dose de mistério e de descoberta. O olhar é convidado a ir ao encontro do que é mais importante, deixando que o linear escuro tanto sustente a natureza, o chão ou as formas construídas, num jogo entre a perfeição advinda do pormenor e a vastidão a descobrir. Estamos perante um olhar que se deixa impressionar por matizes essenciais e primordiais para o retrato da Arrábida, espaço dominado pela luz e por variações de verde e de azul.

Temos assim o verso e a cor em deambulação por esta Arrábida interiorizada, em poemas curtos de Alexandrina Pereira e em telas fecundas do que é essencial devidas a Nuno David, todas as composições vibrantes entre a grandiosidade dos momentos que o olhar permite e os instantes que prefiguram a reflexão e a oração.

Num texto datado de 1949, publicado na revista Flama, Sebastião da Gama escrevia sobre a serra com quem o Sado se encontra: “O mais difícil não é ir à Arrábida (...). Difícil, difícil, é entendê-la (...).” E, depois, justificava esta dificuldade com a necessidade de cada um demandar, sozinho, “a religiosidade que dá à Serra da Arrábida elevação e sentido”, o espaço onde “é fácil estar a sós com Deus”, descobertas possíveis pela persistência e pelo silêncio que têm permitido à Serra o seu estado de “meditação que já dura há séculos”. E não deixa de ser oportuno mencionar o aparecimento desta obra de Alexandrina Pereira e de Nuno David quando passam os 80 anos da publicação dessa outra que, por empréstimo, deu nome literário à Arrábida — Serra-Mãe, de Sebastião da Gama, surgida em Dezembro de 1945, primeiro livro do poeta azeitonense, que já invocava Agostinho da Cruz para patrono...

Os autores de Arrábida — Entre a Cor e o Verso, ambos experimentados em escrever e pintar o panorama e o coração da Serra, conseguem levar-nos até essa via do conhecimento que nos exige, a cada dia, “entender” a Arrábida.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1607, 2025-09-24, pg. 2.